O SARS-CoV 2 em uma análise lipídica ao contato com a membrana celular
Certamente ao ouvir ou ler a palavra lipídio, logo a relacionamos com as “gordurinhas” dispostas em forma de “pneuzinhos” tão indesejados e óleos e comidas gordurosas ingeridas diariamente. Embora não seja uma ideia equivocada, essa classe de moléculas (os lipídios) exerce diversas funções de extrema importância no corpo humano, como armazenamento de energia, utilizada em momentos de necessidade, composição da membrana plasmática das células, isolamento térmico e transdução de sinal.
Conhecendo as funções benéficas que os lipídios exercem no corpo humano, diversas esferas da indústria passaram a aplicá-lo de maneira tecnológica, como por exemplo indústrias de cosméticos, onde introduziram em seus produtos os ácidos linoleico e linolênico, ácidos graxos que influenciam no processo metabólico da pele e na atividade das vitaminas A e E. Além disso, o uso dos lipídios na produção dos cosméticos pode ser bem diverso. Diversos óleos como óleo de abacate e óleo de café são compostos de triglicérides (ácido graxos) e alguns contém fitosteróis (esterol).
Ao iniciar um estudo sobre lipídios, primeiramente é preciso discorrer sobre a membrana plasmática. Ela se constituí em um modelo chamado “Mosaico Fluido” (Nicolson & Singer, 1972), e é composta principalmente de fosfolipídios, proteínas e colesterol. A palavra “fluída” faz jus ao grau de liberdade de movimento que a membrana possuí por falta de ligações covalentes (FIGURA 1).
Fazendo uma breve revisão sobre a membrana plasmática, constata-se que ela é formada por uma dupla camada de fosfolipídios, que são compostos por caudas de ácidos graxos hidrofóbicas longas e apolares e cabeças polares composta de grupo fosfato altamente hidrofílicas, sendo assim, uma molécula anfipática. O colesterol, encontrado na membrana, tende a aumentar a ordem e rigidez da mesma, estabilizando a ordem dos ácidos graxos e diminuindo o grau de liberdade entre os mesmos. Existem também as proteínas que compõem a membrana, integrais ou periféricas, que auxiliam no transporte de substâncias entre as membranas, e os carboidratos, que se anexam às proteínas ou lipídios, formando glicoproteínas e/ou glicolipídios.
Fora essa sua estrutura clássica, a membrana possui regiões lipídicas estruturadas de maneira distinta, ainda sim contendo os componentes básicos de membrana. As regiões de balsas lipídicas (Simons & Meer, 1988) são um bom exemplo destas regiões e apresentam grande importância, que será discutida mais à frente. É importante primeiro ressaltar a composição desse microdomínio de membrana (FIGURA 2). Sua região tende a ser mais espessa, devido as associações estáveis dos grupos acil saturados longos dos esfingolipídios com o sistema de anéis longos do colesterol, além de ser enriquecida com tipos específicos de proteínas integrais, aquelas ancoradas à membrana por duas cadeias longas de ácidos graxos saturados ligados covalentemente por resíduos de cisteínas ou proteínas ancoradas por GPI. Além disso, esta região é levemente mais ordenada, ou seja, menos fluida, do que os microdomínios vizinhos compostos por fosfolipídeos.
Grupos acil, precisamente grupos palmitoil, ligam-se à uma proteína integral chamada caveolina, onde essa está ligada a dois domínios globulares conectados por um hidrofóbico, que liga essa proteína ao citoplasma da membrana. Formam-se então, dímeros de caveolinas e esses associam-se à regiões enriquecidas com colesterol, forçando a bicamada lipídica a curvar-se e formar cavéolas (FIGURA 3).
A principal função da balsa lipídica é a transdução de sinal, ou seja, ao receber um sinal, ele é diretamente convertido em outras respostas ou sinais específicos. Por esse motivo, participa também nas respostas do sistema imunológico, ativando os linfócitos e gerando uma resposta.
Atualmente, sabe-se que as balsas lipídicas podem servir de porta de entrada para diversos agentes externos, como os vírus. Sendo os vírus parasitas intracelulares obrigatórios, para que consigam entrar na membrana plasmática é imprescindível a interação entre o vírus e o receptor celular expresso na membrana plasmática.
Estudos sobre outros meios de ligação lipídio-proteína também estão sendo feitos com algumas imitações de membrana que favorecem um ambiente estável para a caracterização biofísica in vitro. Entre os diversos imitadores, os nanodiscos lipídicos monodispersos têm sido utilizados como um imitador de membrana adequado para estudos estruturais e funcionais. Eles são formados por lipídios sintéticos comerciais misturados à uma proteína de membrana solubilizada com detergente e a proteína andaime da membrana. Contudo, eles ainda podem influenciar no comportamento da membrana na célula devido aos seus lipídios sintéticos, alterando a ligação principal.
A epidemia de 2020, provocada pelo o vírus Sars-Cov-2, que causa a doença COVID-19, está diretamente relacionada à ligação entre lipídio e proteína. Existe uma proteína transmembrana localizada nas regiões de balsas lipídicas que estão ligadas à superfície externa de células de nosso organismo, como por exemplo células de nosso sistema respiratório e cardíaco, que possui o objetivo de reduzir a pressão arterial, catalisando a hidrólise de angiotensina II, que é um vasoconstritor, em angiotensina (1-7), que é um vasodilatador. Entretanto, a ACE2 (enzima conversora de angiotensina 2), como é chamada, também auxilia na entrada de alguns coronavírus na célula, como é o caso da Síndrome Respiratória Aguda 2 (Sars-Cov-2).
O vírus entra na célula por endocitose quando ocorre a ligação da proteína spike 1 do vírus ao domínio enzimático da ACE2 (FIGURA 4). Esse processo requer a ativação da proteína S pela TMPRSS2 (serina protease transmembranar 2) hospedeira. Uma vez dentro da célula (FIGURA 5), a capa proteica do vírus é quebrada pelo lisossomo da célula hospedeira e desse modo o seu RNA viral consegue ser liberado. O RNA (fita única) viral do coronavírus possuem o sentido positivo (+), ou seja, consegue ser lido e transcrito diretamente pela célula hospedeira.
Logo após o RNA ser transcrito e cópias do vírus terem sido produzidas, vesículas de secreção são formadas e novos Sars-CoV-2 são liberados no citoplasma, dando continuidade ao procedimento de invasão celular.
Uma vez no organismo, para um indivíduo que não possui memória imunológica ao vírus, ou seja, nunca foi acometido por COVID-19, a imunidade inata é acionada e em poucos segundos macrófagos e leucócitos são liberados. Sendo insuficiente para a defesa dos patógenos, a imunidade adquirida inicia sua função. No momento que um antígeno, nesse caso o vírus SARSCov- 2, adentra o organismo, os linfócitos, mais precisamente o linfócito B, fica responsável pela produção de anticorpos que atuarão na linha de defesa. Caso o processo de invasão celular esteja mais acelerado que a produção de anticorpos, o organismo tende a baixar sua imunidade.
Explorar a química de organismos vivos e as reações químicas e biológicas relacionadas a eles simboliza o estudo da Bioquímica, uma ciência que investiga a interação de todas as biomoléculas, bem como os lipídios, e seus métodos de ação nesses organismos,fazendo-nos compreender que tudo está interligado.
De fato, a COVID-19 atingiu o mundo de surpresa, mas graças ao estudo da bioquímica torna-se possível a investigação e o fortalecimento de novas pesquisas. Cientistas correm contra o tempo enquanto o índice de mortalidade aumenta gradativamente em todo planeta. Certamente, o ano de 2020 ficará para a história, assim como o reconhecimento pela ciência.
Referências:
MEDICINA DIAGNÓSTICA (Brasil). ACE2: Conheça a proteína presente em nosso organismo que facilita entrada do SARS-CoV-2. Bio em Foco, 23 abr. 2020. Disponível em: http://bioemfoco.com.br/noticia/ace2-proteina-que-facilita-entrada-do-sars-cov- 2-no-organismo/. Acesso em: 4 jul. 2020.
CORONAVIRUS and COVID-19. Direção: Doctor Klioze. YOUTUBE: [s. n.], 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch v=11f8h-fSM_M. Acesso em: 4 jul. 2020.
COVID and the ACE-2 surface protein. Direção: Doctor Klioze. YOUTUBE: [s. n.], 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W1k1sUoLPlA. Acesso em: 4 jul. 2020.
ALBERTO MONTEVERDE, Maldonado. COVID-19: aspectos inmunológicos de una patogenia cardiovascular: ¿Nada nuevo que Aprender?. CMICA, 2020. Disponível em: https://cmica.com.mx/covid-e-inmunologia-sobre-patologia-cardiovascular-dr albertomonteverde- maldonado/. Acesso em: 4 jul. 2020.
LU, Yanning, LIU, Ding Xiang, TAM, James P. Lipid rafts are involved in SARS-CoV entry into Vero E6 cells. Biochemical and Biophysical Research Communications, 2 de maio de 2008. Disponível em <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0006291X08002465 > Acesso em 4 de julho de 2020.
WALLS, Alexandre C, PARK, Young Jung, TORTORICI, M. Alejandra, WALL, Abigail, MCGUIRE, Andrew T., VESSLER, David. Structure, Function, and Antigenicity of the SARSCoV- 2 Spike Glycoprotein. CellPress, 16 de abril de 2020. Disponível em < https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S0092867420302622token=4A0617EF942E13E9E92D5F817DB81255DD550B78F45353582C41B09B2FAA7B834F8D6148F2C0969 45534B3C7E2F1E8B > Acesso em 4 de julho de 2020.
Autora: Letícia Pavan dos Anjos, graduanda de Bioquimica na Universidade Fderal de São João Del Rey, membro do Diretório Acadêmico do CCO
e-mail: leticiapavan.anjos@hotmail.com
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