Bioquímica e Educação
Como você explicaria para sua avó que água quente com limão não cura COVID?
A bioquímica é o ramo da ciência que estuda as reações químicas e suas interações em um sistema biológico. Ela é responsável por sustentar conceitos de imunologia, biologia celular, histologia, parasitologia, fisiologia, ciências forenses e outras áreas. Está muito presente no dia a dia, como nos fármacos, na culinária, nos cosméticos e até mesmo nas pessoas. Contudo, apesar de ser um conhecimento básico para diversos ramos, a bioquímica ainda é vista como um “bicho de sete cabeças” e muitas vezes tem sua relevância contestada.
Diversas vezes você já deve ter ouvido falar sobre os movimentos antivacina, as dietas bruscas e as famigeradas fake news. Então, todas essas questões advêm, direta ou indiretamente, da falta do conhecimento em bioquímica. E eu vou lhe mostrar o porquê.
Iniciando com o movimento antivacina, que é um grupo de pessoas contrárias à vacinação. Mesmo sendo comprovada a eficácia, por inúmeros pesquisadores, de uma vacina de gripe, de sarampo, BCG e tantas outras, existem pessoas que se inspiram em teorias conspiracionais e assimilam para si que esses imunizantes causam mais mal do que bem para nossa saúde. Caso esses indivíduos compreendam os processos bioquímicos por trás, as vias de ativação e produção de células de memórias, os reais efeitos colaterais e como são causados, com certeza mudariam de ideia a respeito de se vacinar.
Temos, também, as dietas e comportamentos alimentares problemáticos. Influenciadores, blogueiras e até mesmo alguns profissionais de nutrição indicam práticas alimentares metabolicamente inviáveis, com altas restrições, seja na quantidade, na qualidade ou no tempo de ingestão de macromoléculas. Além de empobrecer a ingestão de nutrientes necessários, como lipídeos e carboidratos por exemplo, abster-se de comer causa complicações psicológicas preocupantes. Já é sabido que existe uma relação entre nosso bem estar psicológico e fisiológico, quando um está mal, o outro também fica. Conhecendo o metabolismo celular e a fisiologia do corpo humano, é facilmente perceptível que isso não é saudável e não é de fato eficaz para a perda de peso, como seriam outros hábitos alimentares conjugados a exercícios físicos.
Ainda nesse grupo de problemas, o compartilhamento de fake news promove o caos dentro dos lares brasileiros. Notícias que informam sobre a necessidade de lavar o feijão com vinagre para matar bactérias super resistentes, sobre bananas que curam depressão, semelhanças entre vírus como HIV e SARS-Cov 2 e até mesmo distribuição de máscaras ineficientes pelo ministério da saúde são umas das mais compartilhadas, e seus alcances confundem principalmente àqueles que não são familiarizados com os assuntos. Contudo, caso você tenha um conhecimento mínimo em bioquímica ou um senso crítico desenvolvido para questionar e buscar na internet a veracidade de tais notícias, é facilmente conclusivo que são falsas.
Logo, para resolver esses problemas, o entendimento da bioquímica é uma arma poderosa é extremamente importante em nossas vidas. Sem ela, ainda estaríamos, por exemplo, sendo aterrorizados por doenças hoje facilmente evitáveis. Agora, temos uma outra questão, como passar adiante esse conteúdo tão importante?
Para que se possa ensinar alguém, é necessário que se aprenda a aprender antes. Dentre as inúmeras modalidades e filosofias de aprendizagem, temos a aprendizagem significativa. Tal processo se baseia na construção de vínculos entre conteúdos já aprendidos com os novos que estão por vir, para facilitar o entendimento do que se quer entender. O conhecimento é criado tendo como base outro já existente. Como por exemplo, para compreender o funcionamento do processo de vacinação, pode-se dizer que é similar ao de mostrar uma foto do patógeno para o sistema imune, o qual passará a reconhecer esse organismo sem ter entrado em contato com ele de fato. Ao invés de trazer termos como “apresentação de antígeno para os linfócitos via MHC do tipo II”, que são mais difíceis de se entender, é possível criar associações com signos do cotidiano, como as fotos. Te garanto que imunologia fica bem mais fácil assim.
Outro exemplo dessas associações é o de macromoléculas com elementos de uma construção. Ao se comparar os lipídios a paredes e a um muro alto que cerca a casa, as proteínas a ferramentas da construção, o DNA a quem chefia a obra, o RNA a trabalhadores que obedecem ao chefe e os carboidratos como etiquetas e fonte de energia para as pessoas, é possível criar um entendimento do dogma central da biologia molecular e do funcionamento da célula como um todo. Com isso, fica mais fácil elucidar a importância de se ingerir lipídeos de forma regular na alimentação, sem eles a casa seria apenas um amontoado de móveis no jardim.
Além desses exemplos existem inúmeros outros que vão variar de acordo com as vivências de cada um. Não adiantaria, portanto, tentar entender o processo de imunização por meio da visualização de uma foto se você, ou quem estiver aprendendo, nunca viu uma
foto na vida. A aprendizagem significativa tem essa demanda por conhecimentos prévios. Sendo assim, é necessário ter consciência dos conhecimentos gerais de quem você vai ensinar, ou seja, saber o que aquela pessoa sabe para poder construir novos saberes.
Indo por essa linha, o alicerce da educação se dá na escola. É nela onde teremos a passagem dos principais fundamentos das ciências. Pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular), o estudo das ciências naturais se dá desde o ensino fundamental até o ensino médio, e durante esses anos, deve ser construído o letramento científico. Este baseia-se no desenvolvimento de um pensamento crítico acerca dos acontecimentos externos. Sem ele, é impossível que uma pessoa consiga reconhecer, por exemplo, se uma determinada linha de pensamento é lógica, ou se uma atitude em questão é ética. É por meio do letramento científico que as pessoas aprendem a ver o mundo com um olhar crítico e a perguntar ‘por quê’ no momento certo.
Na prática, o letramento científico é promovido dentro do ambiente de aprendizagem quando surgem situações problemas, há promoção de debates e testes das hipóteses formuladas e ocorre a assimilação por parte dos alunos sobre o que ocorreu. Exemplificando, quando um professor do ensino fundamental entra na sala com uma caixa lacrada e pede para os alunos descobrirem o que há dentro sem abri-la. Nesse momento, asituação problema é “O que há dentro da caixa?”. Os alunos, que tiveram sua curiosidade despertada, irão mexer na caixa, sentir o peso, ouvir os barulhos que o objeto faz e uma série de outros experimentos, para que, com base em seus resultados, formulem hipóteses do que tem ali dentro. Depois dos palpites e debates, o professor diz quais hipóteses estão certas e quais não, levando à criação de novos pensamentos até que alguém acerte o que há dentro da caixa.
Integrando esses dois pilares do aprendizado, o letramento científico, e a aprendizagem significativa, fica mais fácil de aprender e explicar bioquímica. Tomando como exemplo uma das fake news mais repassadas do momento, vamos aplicar uma explicação a ela que qualquer pessoa fora da área entenderia. A notícia é de que, tomar água a 26°C com limão mata o SARS-Cov2, responsável pela atual pandemia, e todos os outros vírus. Inicialmente, sabemos que esse coronavírus infecta seres humanos, certo? Usando um conceito básico de fisiologia, sabemos que o corpo humano tem uma temperatura média de 36°C. Caso o vírus fosse morto em uma temperatura de 26°C, ele provavelmente nem entraria no nosso corpo, que é 10°C mais quente, não é mesmo? Além disso, os componentes contidos no limão não são letais a todos os vírus. Se fosse assim, fariam um lubrificante a base de limão e ninguém iria se infectar com hepatite, HIV, HPV e outras ISTs causadas por vírus, ou até mesmo a pessoa que ingerisse o limão seria imune e se curaria de todas as viroses possíveis. Você já viu alguém se curar de ebola apenas com suquinho de limão morno?
Ao sintetizar essas reflexões e expressá-las de forma lúcida, é possível explicar até para sua avó que a supracitada notícia é falsa. Claro que, o suco de limão continua sendo uma bebida agradável e recomendada para manter um corpo saudável e hidratado. Mas a questão em jogo é associá-la à cura de doenças, o que não é verdade.
Sendo assim, entender bioquímica e saber compartilhar o conhecimento é extremamente necessário para evitarmos que tenhamos mais problemas como movimentos antivacina, alimentações desreguladas e fake news. Lembre-se, a educação é a melhor forma de resolvermos os nosso problemas e todos precisam ter acesso a ela, principalmente pessoas fora do meio acadêmico.
Referências:
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A%20explica%C3%A7%C3%A3o%20para%20o%20surgimento,sobreviver%20e%20posteri
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http://www.farmacia.pe.gov.br/noticia/como-funcionam-vacinas
Autor: Filipe Vilaça Guimarães de Oliveira, graduando em Bioquímica da Universidade Federal de Viçosa.
Email: filipe.guimaraes@ufv.br
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