Bioeconomia em construção: explorando questões chave de produtos biobased
Hoje trazemos um texto publicado no blog Infopetro em setembro do ano passado, de autoria do prof. José Bomtempo, um estudioso da área de bioeconomia. O Bacharel em Bioquímica que se inclina a áreas não laboratoriais como estratégias de inovação e investimento ou gestão tem nesta área de bioeconomia uma grande oportunidade!
Matérias-primas no Brasil: foco nas culturas tradicionais ou diversificação de fontes? Como montar um portfólio de bioprodutos? Qual o papel dos produtores de biocombustíveis no desenvolvimento da bioeconomia? E o papel das startups e empresas estabelecidas? As políticas de demanda de biocombustíveis podem e devem ser estendidas para bioprodutos e bioplásticos? O Brasil precisa de uma estratégia estruturada em bioeconomia? São muitas e complexas questões que exigiriam mais do que uma postagem para discuti-las com alguma profundidade. Mas achamos que vale colocá-las como pontos de reflexão.
Nas últimas semanas, o nosso Grupo de Estudos em Bioeconomia realizou a primeira edição de um programa de capacitação em Bioeconomia e Inovação. O programa teve 40 horas de duração e foi desenvolvido com o objetivo de apresentar e discutir, na perspectiva da bioeconomia, a dinâmica tecnológica e de inovação que envolve a formação da indústria baseada em matérias-primas renováveis. Procuramos identificar os atores-chave envolvidos na bioeconomia e discutir suas estratégias e políticas. A perspectiva adotada nas sessões foi de buscar sempre uma visão global da bioeconomia. Ao final, foi feito um exercício de trazer algumas questões para o âmbito brasileiro e colocá-las em discussão com os participantes. Essa discussão ilustra de certa forma os desafios que se colocam para o desenvolvimento da bioeconomia no país.
Participaram 15 profissionais de formações variadas (economistas, engenheiros, administradores, biólogos) e de diversas organizações (BNDES, FINEP, INPI, SEBRAE, ABIQUIM, ChemVision e UFRJ).
Na linha das discussões que têm sido conduzidas neste blog, as apresentações e as atividades (exercícios, cases, vídeos), partindo da premissa de que a indústria biobased é uma indústria emergente, exploraram sempre o processo de estruturação da indústria. Esse processo, na nossa visão, se articula em torno de quatro dimensões: matérias-primas, tecnologias, produtos e modelos de negócios. Essas dimensões co-evoluem dentro de um macroambiente – a paisagem sócio-técnica – que envolve as políticas, regulações e tendências da sociedade.
Trazendo a perspectiva para o caso brasileiro, submetemos aos participantes seis questões para discussão. Vejam como foram debatidas as questões sobre matérias-primas, produtos, estratégias empresariais e políticas. Importante destacar que são discussões de não especialistas nos temas que servem muito mais para dar uma visão dos problemas do que para encaminhar soluções efetivas.
Matérias-primas
Na indústria biobased, a disponibilidade de matérias-primas é estratégica. Além disso, a matéria-prima influencia de forma decisiva a própria estrutura da indústria biobased. Por isso, muitos esforços têm sido feitos nesse tema. No caso brasileiro, esses esforços devem ter como objetivo a diversificação ou o foco nas matérias-primas já bem desenvolvidas, como cana e recursos florestais? Quais os desafios envolvidos em cada caso?
Uma resposta inicial a essa questão tendeu a ser claramente voltada para o foco nas culturas já desenvolvidas. O desafio seria então prover as condições para que o desenvolvimento tecnológico seja assegurado e essas culturas mantenham um ganho de produtividade em longo prazo. Destaquem-se aqui os grandes desafios que envolvem a cana de açúcar: biotecnologia avançada, inovações na mecanização e manejo, desenvolvimento da cana energia. Foi destacado que esses desafios são expressivos e que só podem ser atacados com sucesso se houver um esforço brasileiro consequente já que a cana de açúcar não é uma cultura global como milho, soja e trigo por exemplo.
Mas o potencial brasileiro para a produção de recursos renováveis, segundo outra perspectiva, não poderia ser desprezado. Culturas com potencial, como o dendê, mamoma e outras, não poderiam ser esquecidas. Se o conhecimento tecnológico pudesse ser desenvolvido e a perspectiva de oferta competitiva fosse avaliada criteriosamente, novas matérias-primas deveriam ser incorporadas.
Mas existe outro polo que explora a biodiversidade brasileira para produções em menor escala como as matérias-primas para cosméticos. Esse segmento é muito importante tanto pela própria riqueza da biodiversidade quanto pelo potencial de desenvolvimento desse segmento industrial no Brasil que tem relevância mundial. Essas matérias-primas, entretanto, têm um desafio de outra natureza. Não são esforços tecnológicos de ponta, mas o relacionamento com as comunidades, a estruturação de esquemas familiares de produção. Situa-se, portanto, no campo do desenvolvimento de arranjos produtivos com desafios mais de gestão do que de esforços tecnológicos de ponta.
Resíduos como matérias-primas
Com a importância crescente do conceito de economia circular, os resíduos são vistos como fonte de recursos a serem aproveitados. Quais os desafios para estruturação dos negócios em bioeconomia baseados em resíduos? Que políticas seriam necessárias para estimular esse desenvolvimento?
As discussões a respeito dos desafios para estruturação dos negócios utilizando resíduos foram unânimes em relação à necessidade de estruturar a cadeia de forma a garantir o suprimento desses com qualidade, quantidade e preço necessários. Considerando que em geral estes resíduos estariam geograficamente dispersos, a logística aparece como o ponto mais crítico. Neste caso, a integração entre atores distintos se torna um desafio adicional, possibilitando, por exemplo, o surgimento de empresas que ofereçam soluções relacionadas à logística e que possam resolver questões como caracterização dos resíduos para vencer os obstáculos de sazonalidade e alta variabilidade desses materiais. Nas palavras de um dos participantes: ”Resíduo barato não é garantia de negocio bem sucedido”. A maior interdependência entre atores também se coloca como desafio adicional, visto que altera a dinâmica ao longo da cadeia produtiva. Gargalos tecnológicos e metodologias de separação de resíduos, elaboração de formas adequadas de captura de valor também foram citados como desafios importantes.
Identificou-se ainda o desafio de valorização dos resíduos no longo prazo. À medida que estes forem encarados não mais como rejeitos, mas como matérias-primas, os preços tenderão a subir, o que poderia inviabilizar negócios que foram criados a partir da premissa de custos baixos ou até mesmo negativos da matéria-prima.
A natureza das políticas de estímulo ao desenvolvimento de negócios baseados em resíduos pode variar, o que exige que os agentes governamentais proponham os incentivos e articulações adequadas. Essas diferenças surgem ao se considerar os resíduos urbanos e os resíduos agroindustriais, por exemplo.
Em resumo, identificaram-se muitos desafios, enfatizando a logística, e uma forte necessidade de ações do governo no sentido de auxiliar a estruturação destes negócios, com mecanismos diversos e ações tanto focadas nas empresas quanto na sociedade.
Produtos
Os desenvolvimentos tecnológicos em bioquímica e outras áreas abrem a possibilidade de desenvolvimento de uma vasta gama de produtos: drop in e não drop in, novas moléculas e plataformas, uso mais ou menos eficiente da biomassa. Quais os critérios mais importantes que devem ser levados em consideração para a definição de uma agenda de produtos a serem desenvolvidos pela indústria no Brasil? Quais os desafios envolvidos?
A definição de uma agenda de produtos a serem desenvolvidos revelou-se um tema difícil com visões polarizadas que sugerem provavelmente a necessidade de um aprofundamento na compreensão das oportunidades e desafios envolvidos.
Evidenciou-se certa nebulosidade quanto aos critérios para a formação de uma agenda de produtos. Enquanto alguns participantes se colocaram em uma posição bastante conservadora quanto aos riscos, dando preferência aos produtos drop in, outros se mostraram preocupados com uma agenda que não contemple os não drop in, vendo nestes uma oportunidade de geração de valor importante para a Bioeconomia no Brasil. Conclui-se que para os participantes, além dos critérios tradicionalmente considerados nos estudos, como as oportunidades de demanda, o maior aproveitamento da biomassa, uma questão crítica deve ser considerada: temos competências para desenvolver os bioprodutos? Como desenvolver tais competências? A agenda de produtos tem a sua importância para que possa desencadear um mapeamento de competências requeridas a serem desenvolvidas no caso brasileiro.
Papel dos produtores e startups
O sucesso brasileiro no desenvolvimento de uma forte indústria de biocombustíveis criou um conjunto de empresas envolvidas com o uso industrial da biomassa. Essas empresas enfrentam desafios para se inserirem numa perspectiva de biorrefinaria com a produção de biocombustíveis e bioprodutos. Qual o papel das empresas da indústria brasileira de biocombustíveis no desenvolvimento da bioeconomia? Qual a importância da inserção de startups e da participação de empresas estabelecidas em outras indústrias?
Houve consenso dos grupos de que os atores atuais (produtores de etanol) não seriam os protagonistas de uma transição para a Bioeconomia, entretanto, sua participação é relevante. Afinal, a cadeia estruturada de biocombustíveis constitui um passo importante na direção de um contexto mais amplo da Bioeconomia por causa da matéria-prima e do potencial aproveitamento dos resíduos da cana. Entretanto, a maioria dos produtores de biocombustíveis não detêm competências para lidar com a produção e a comercialização de bioprodutos. Deve ser ressalvado, porém, que o perfil dos chamados usineiros vem se transformando com a entrada de capitais de diversas origens, nacional e internacional, com visão estratégica industrial. Seria o caso, por exemplo, do surgimento da Granbio que tem o propósito de avançar em bioprodutos.
Dessa forma, o desenvolvimento da Bioeconomia passará pela participação de outros atores, como as startups, que trazem competências tecnológicas indispensáveis para as inovações em produtos, e as empresas estabelecidas de diversos setores, como química e petroquímica, que trazem competências complementares como as relacionadas ao desenvolvimento de aplicações e mercados para os bioprodutos inovadores.
Políticas para biocombustíveis e bioprodutos
Existe uma discussão hoje no mundo sobre a necessidade de existirem políticas de demanda para bioprodutos e biomateriais, a exemplo das que existem para os biocombustíveis. As políticas existentes no Brasil para biocombustíveis de primeira geração podem ser adaptadas para o desenvolvimento dos biocombustíveis avançados, bioprodutos, biomateriais e biorrefinarias? Ou seriam necessários mecanismos específicos? Quais, por exemplo?
A discussão neste caso foi interessante, visto que a percepção dos grupos foi bastante divergente no que se refere às políticas de demanda para biocombustíveis de segunda geração. Enquanto um grupo rapidamente chegou ao consenso que seria lógica uma adaptação do mandato de mistura de etanol em gasolina para englobar o etanol 2G, por exemplo, com uma exigência de 0,5% deste na mistura e o restante de 1G, outro grupo apresentou posição totalmente contrária à adaptação do arcabouço existente hoje para etanol 1G para o etanol 2G. Na visão do grupo, as políticas deveriam ser no sentido de estimular a oferta, através de incentivos fiscais e subsídios visando redução de custos. No entanto, tais medidas teriam que ser transitórias, de forma que não criem uma “acomodação” por parte dos produtores ao diminuir a necessidade de aprimoramento tecnológico para redução dos custos. Além disso, o grupo levantou um ponto interessante: por que estimular etanol 2G? Não seria mais interessante utilizar a biomassa para produção de outros produtos de maior valor agregado?
A visão do terceiro grupo foi mais ponderada, considerando tanto uma possível adaptação quanto à criação de novos mecanismos de estímulo a demanda de etanol 2G. Um dos participantes frisou: ”As políticas de demanda do etanol 1G devem ser analisadas para não se cometer os mesmos erros”. Soluções mais flexíveis, não mandatórias pareceram mais adequadas. Por exemplo, um participante sugeriu uma regulação que introduzisse metas de substituição no longo prazo, mas que fosse flexível e fortemente associada às políticas de oferta, sem cotas pré-fixadas.
Por outro lado, ao abordar o caso dos bioprodutos, biomateriais e biorrefinarias, houve um consenso maior. De forma geral, os participantes tiveram a percepção que seria difícil criar políticas de demanda dada as especificidades dos produtos. Mais do que isso, enfatizaram que para estes casos deveria prevalecer a lógica econômica de livre mercado, ou seja, as políticas de demanda, se existissem, deveriam buscar corrigir outras falhas de mercado existentes no Brasil, as quais não são exclusivas para bioprodutos e biomateriais. Novamente, as políticas de oferta pareceram mais adequadas.
Alguns participantes argumentaram que o uso do poder de compra do governo poderia ser um mecanismo interessante, mas com uma abordagem na qual “ser de base renovável” fosse um critério considerado, mas não a única característica a ser considerada. Esta proposta novamente reforçou a percepção da dificuldade na criação de mecanismos de estímulo a demanda de bioprodutos e biomateriais, apontando para a necessidade de uma reflexão ampla sobre o tema e criatividade na elaboração das políticas de forma que possam ser eficientes.
Política e estratégia brasileira em bioeconomia
O Brasil tem iniciativas importantes relacionadas à bioeconomia, mas não tem uma estratégia nacional definida com objetivos e metas a serem alcançadas. Em que medida essa ausência limita o papel que o país pode ter na bioeconomia no mundo? Quais os papéis possíveis que o Brasil pode exercer na bioeconomia, dada essa ausência? Considere na discussão o papel das 4 dimensões de estruturação da economia biobased – matérias-primas, tecnologias, produtos e modelos de negócio/estratégias empresariais.
Os participantes foram enfáticos e claros no entendimento de que a inexistência de uma estratégia brasileira definida em bioeconomia é um limitante de grande importância no papel que o país pode vir a ter na bioeconomia no mundo. Entende-se que essa limitação tende a deixar o país limitado à condição de produtor eficiente de matéria-prima, perdendo a oportunidade de ser um ator importante nos novos setores industriais em desenvolvimento.
Uma das dificuldades que ficam à mostra com a ausência de uma política nacional explícita é a falta de coordenação entre os agentes governamentais envolvidos com as diversas etapas da cadeia da bioeconomia. Nesse ponto a menção ao recente relatório americano Federal Activities Report on the Bioeconomy foi destacada como exemplo, a ser perseguido, de alinhamento de iniciativas e coordenação entre os diversos agentes governamentais envolvidos na bioeconomia. A valorização da posição do país como produtor privilegiado de recursos biológicos renováveis exige uma estratégia nacional bem elaborada e sofisticada que permita aproveitar essa vantagem inicial para criar uma capacitação tecnológica efetiva e competitiva na bioeconomia como um todo.
As discussões deixam claro duas perspectivas importantes em relação às questões debatidas. A primeira é existe uma complexidade em diversas dimensões da bioeconomia que exige um esforço de aprofundamento para que as iniciativas no Brasil, tanto das empresas quanto das agências de governo, sejam fundamentadas e promissoras. Esse é o caso, por exemplo, dos esforços em matérias-primas, da definição das linhas de produtos –alvo e das políticas de apoio aos biocombustíveis avançados e bioprodutos.
A segunda é a importância, vista como absolutamente crítica, da existência de uma política brasileira que englobe as diversas dimensões da estruturação da bioeconomia, facilitando a articulação entre os atores e dando coerência às iniciativas. Além disso, a política brasileira em bioeconomia é indispensável como forma de estabelecer uma coordenação entre agentes-chave do processo, hoje pouco integrados no desenvolvimento da bioeconomia.
Por fim, cabe deixar claro que as discussões não têm validade como levantamento sistemático da visão dos stakeholders. Trata-se de um exercício em torno das questões-chave da bioeconomia no Brasil com o objetivo de provocar a reflexão sobre o tema. É dessa forma que essa postagem deve ser lida.
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